O Senado Federal aprovou em junho a Medida Provisória 1031/2021, que permite a privatização da Eletrobras. Um documento produzido pelo grupo de pesquisa em Mobilidade e Matriz Energética, da UNILA, traz reflexões sobre essa privatização, destacando dois aspectos: o valor de mercado da Eletrobras e a relação entre água, energia elétrica e desenvolvimento econômico. “Queremos que a Eletrobras seja vista e avaliada de uma maneira holística, considerando todas as interfaces possíveis, que é o que não acontece hoje”, explica o docente do curso de Engenharia de Energia e integrante do grupo de pesquisa, Ricardo Hartmann. “Fazendo uma analogia, quando uma família tem de vender um bem, tenta conseguir o melhor preço possível. É isso que precisa acontecer com a Eletrobras”, ilustra.
A privatização da Eletrobras será executada na modalidade de aumento do capital social, por meio da subscrição pública de ações ordinárias. O projeto prevê, ainda, a outorga de novas concessões de geração de energia elétrica pelo prazo de 30 anos. O governo estima arrecadar R$ 100 bilhões com a venda de ações da empresa na bolsa de valores.
Para subsidiar a discussão sobre qual valor deve ser atribuído à Eletrobras no momento de se colocar as ações à venda na Bolsa de Valores, o grupo de pesquisadores avaliou duas usinas que são parte da empresa: Belo Monte e Tucuruí, ambas no Pará e as maiores produtoras de energia depois de Itaipu Binacional, que não está entre as usinas que mudarão de controle.
“Nosso objetivo é contribuir fornecendo valores de quanto a empresa vale. Não houve discussão sobre valor mínimo para a Eletrobras. Essa questão foi muito mal discutida”, comenta o professor Ricardo Hartmann, integrante do grupo de pesquisa. “A gente só fez o cálculo de duas usinas hidrelétricas. Faltam 46 hidrelétricas e as usinas eólicas e solares, que também estão sob responsabilidade da Eletrobras. Somados os resultados das usinas hidrelétricas, o valor da Eletrobras, com certeza, passaria de R$ 3 trilhões”, comenta.
O documento chama a atenção, ainda, para a arrecadação das linhas de transmissão que também compõem o portfólio da Eletrobras e que somam 64 mil quilômetros – suficientes para dar uma volta e meia na Terra – e cujos resultados financeiros devem de ser levados em conta. A Eletrobras detém o controle de 56% das linhas de transmissão no Brasil. Em 30 anos, a empresa arrecadaria R$ 468 bilhões em tarifa de uso do sistema de transmissão (TUST). “Isso também não foi levado em consideração.”
Sobre essa questão, o documento ressalta que o sistema de transmissão de energia elétrica integrado no Brasil “é um dos mais sofisticados do mundo e foi fruto de décadas de investimento em pesquisa e desenvolvimento em engenharia, realizados pelo estado brasileiro e operacionalizados principalmente pela Eletrobras”. Para os pesquisadores, este conhecimento tecnológico acumulado por décadas “tem um valor inestimável”.
A privatização também deve levar em conta, segundo o estudo, os desafios futuros de produção de energia no Brasil, como a proposta da indústria automobilística de substituição dos motores a combustíveis fósseis por motores elétricos, o que irá aumentar substancialmente a demanda por energia elétrica nos próximos anos.
Como exemplo, os pesquisadores calcularam a energia necessária para abastecer a frota à gasolina em circulação na cidade de São Paulo durante um ano: 55% da produção anual de Tucuruí. “Não tem nada previsto. Está se criando um novo problema e a privatização simplesmente não discute isso.”
Ricardo Hartmann vê com preocupação a possível extinção do Centro de Pesquisas da Eletrobras (Cepel), uma vez que a Medida Provisória 1031/2021 garante a sua manutenção por apenas quatro anos. “Isso é um absurdo do ponto de vista da pesquisa e do desenvolvimento científico, ainda mais em um setor estratégico”, diz.
Os dados selecionados e analisados pelo grupo de pesquisa estão dispostos na forma de mapas, tabelas e planilhas que podem ser acessados pela internet. Esses mapas utilizam softwares, como o Qgis, e o GeoNode, um sistema de gerenciamento de conteúdo geoespacial para web.
Água e energia
Outro aspecto que deve ser observado na privatização da Eletrobras é que a empresa detém os reservatórios de água das usinas, o que implica também na questão da segurança hídrica, enfatiza o grupo.
Para mostrar a relação da segurança hídrica com o processo de privatização, o grupo usou a Usina de Sobradinho como exemplo. O reservatório de Sobradinho tem potencial para garantir o consumo de uma população de 322 mil pessoas por um ano, considerando um consumo médio de água de 25 litros/pessoa-dia. “Nesse sentido, a propriedade de usinas hidrelétricas tem importância também no que diz respeito à segurança hídrica e isto deve ser somado ao valor da empresa”, avalia o documento.
A questão ambiental ultrapassa a área de reservatórios: a gestão e a conservação das bacias hidrográficas e de áreas de mananciais são fundamentais, e a questão ambiental deve estar “intimamente” ligada às decisões de privatização, dizem os pesquisadores. “Proteger os recursos hídricos, nascentes, é importante para termos um futuro melhor. Quando há um uso muito intenso da água, na agricultura e também nas áreas urbanas, quando não há controle, isso também coloca em cheque a matriz energética que o país tem conseguido gerir de uma forma adequada”, comenta o docente do curso de Geografia e integrante do grupo de pesquisa, Diego Flores.
A gestão hídrica tem importância estratégica ainda maior ao se considerar o contexto de períodos de seca, que vem se aprofundando, e o crescimento da população, o que aumenta a pressão por fontes de água limpa. “A água é um recurso extremamente importante e, se a sociedade como um todo não começar a se preocupar de forma mais séria com os recursos hídricos no geral – rios, lençol freático, aquíferos –, isso vai se tornar um imenso problema para todos: ricos e pobres”, comenta Diego Flores.
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